Bar de Escuta
Viver em são paulo é viver em uma cacofonia quase que constante. Diariamente a gente convive com tantos estímulos, que é um processo normal começar a ignorá-los a longo prazo e você só se dá conta disso, quando passa sua primeira noite no interior onde encontra um silêncio absoluto e consegue ouvir até mesmo o seu próprio corpo.
Acho que só nesse momento, a gente consegue ter uma comparação do quanto estamos expostos a barulhos em tempos modernos.
Aqui de casa, eu consigo ouvir naturalmente, obras, um pouco do tráfego de aviões chegando no aeroporto de Congonhas, carros, motos, na madrugada ouço caminhões entrando na cidade geralmente trazendo material para obras ou carregando entulho para fora da cidade.
A exposição prolongada ao ruído tem impactos significativos na saúde. Com base nas novas informações da OMS, estima-se que a exposição a ruídos contrastantes causa 12.000 mortes prematuras e contribui para 48.000 novos casos de doença cardíaca isquêmica por ano em toda a Europa. Também é estimado que 22 milhões de pessoas sofrem de incômodo crônico alto e 6,5 milhões de pessoas sofrem de distúrbios crônicos do sono. De acordo com as evidências da Organização Mundial da Saúde, esses impactos na saúde começam a ocorrer abaixo dos limites de notificação definidos pela Diretiva de Ruído da UE e, portanto, provavelmente são subestimados. Além disso, as informações fornecidas pelos países sob a diretiva da UE não abrangem todas as áreas urbanas, estradas, ferrovias e aeroportos. Aqui no Brasil a gente não tem muitos dados para analisar os reais impactos da poluição sonora, mas a gente sabe pela OMS que é o segundo fator que mais impacta os moradores de metrópoles, depois da poluição do ar.
A lei do Silêncio aqui de São Paulo estabelece horários para funcionamento de estabelecimentos e obras, mas a gente, que mora aqui, sabe que a multa da lei do psiu tá até inclusa no valor do orçamento de construção dos prédios, para que sejam entregues em tempo recorde. Sinto muito te falar, mas se você comprou um apartamento na planta aqui em são paulo, saiba que a multa do psiu com certeza estava inclusa no valor que você pagou pelo imóvel. Mas os ruídos que provocam poluição sonora vem também de outras fontes como o tráfego aéreo e de carros que realmente nunca acaba nesta cidade.
Existem alguns projetos de lei para reduzir ruídos para quem mora perto de Congonhas, mas eles andam meio parados, provavelmente porque a gente acostuma com o barulho, pelo menos acha que acostuma e porque não existem estudos conduzidos aqui na cidade que são capazes de medir o quanto esse tipo de poluição pode impactar na vida de um cidadão.
Desculpa se eu pareço uma chata falando sobre isso, mas além de afetar os humanos, a poluição sonora também é uma ameaça à vida selvagem, tanto em terra quanto na água. O ruído pode reduzir o sucesso reprodutivo, aumentar a mortalidade e a fuga de animais para áreas mais silenciosas. Já tem um tempo que eu li na folha que golfinhos da baía da Guanabara passaram a se esgoelar para conseguir tagarelar entre si, com o barulho ensurdecedor na área. Ainda resistem por lá, mas o grupo que já teve mais de 400 indivíduos hoje se vê reduzido a 30.
Eu amo morar em São paulo, é algo que me faz muito feliz, mas o custo de morar aqui, metafórico e literal pode ser muito alto, sabe? Acredito que todo mundo que mora aqui, já se pegou imaginando o tanto de qualidade de vida a mais teria, caso morasse em outro lugar, sabe?
A nossa vida cotidiana pode ser muitas vezes descrita como um grande multitasking, muitas tarefas ao mesmo tempo, muita informação, muita tela, muito ruido e chega ser incrível ver uma pessoa focando em uma única fonte de entretenimento ou tarefa por 45, 50 minutos. Afinal, quando que a gente consegue focar em uma mesma atividade sem distrações, sem checar o celular? São pouquíssimas situações, e muitas pessoas desenvolvem táticas para tal ou então recorrem à música para trazer o tom.
Como música de fundo para trabalhar ou estudar, a música lo-fi tem se tornado cada vez mais popular. O estilo é conhecido por seu tom tranquilo e suave e batidas repetidas, que podem ajudar a bloquear ruídos externos e promover tranquilidade. Acredita-se que as frequências mais baixas da música lo-fi e a ausência de letras podem ajudar alguém a se concentrar de forma mais eficaz.
É importante notar que os efeitos da música no humor e na emoção podem variar de pessoa para pessoa, e o que uma pessoa acha relaxante e calmante pode não ter o mesmo efeito em outra. Mas no geral, as pesquisas variadas sobre o tema sempre sugerem que músicas suaves e relaxantes como lo-fi podem ter um impacto positivo no humor e nos níveis de estresse.
minha playlist
ao lado você encontra a playlist que mais me acompanha no dia a dia e define o tom de vários momentos da rotina: trabalho, lazer, leitura, um banho relaxante e até mesmo um jantar com amigos.
A música faz parte da nossa vida, porém a forma como a gente tem escolhido experienciar ela tem se transformado nos últimos anos. Não podemos negar a praticidade da música digital, mas muita gente, inclusive eu, voltou para o hábito de ouvir vinil no dia a dia, afinal, ele tem toda uma experiência no entorno. É um momento onde você se dispõe a ouvir e apreciar a música, e enquanto o som está rolando, tem uma capa num formato grande, com encarte que consta as letras e todas as informações da ficha técnica, músicos e participações presentes no disco. Todo esse ritual te abraça e te envolve. Sem contar no som cheio e claro que o vinil pode oferecer. Eu acho que é uma opinião bem popular entre audiófilos e muitos entusiastas do vinil, a música pode soar "melhor" no vinil devido à sua natureza analógica, que fornece uma faixa dinâmica mais ampla e menos compressão em comparação aos formatos digitais.
Será que em tempos onde a gente faz tantas coisas ao mesmo tempo, estamos procurando experiências que sejam mais focadas? Com mais presença e qualidade?
Será que é essa busca que nos ajuda a explicar esse crescimento dos chamados Listening Bars, os bares de escuta, onde a ideia é elevar a apreciação musical a um nível superior, convidando o ouvinte a desfrutar cada nota musical de forma única?
Se eu fosse te descrever o visual de um listening bar de forma resumida, seria assim: discos de vinil, aparelhos de som de primeira, decoração intimista e um ambiente acusticamente planejado dedicado aos audiófilos, e entusiastas de som de alta qualidade.
Esses espaços têm alto investimento em sistemas de som de alta fidelidade para garantir uma reprodução de áudio excepcional. A seleção musical é criteriosamente escolhida por DJs, especialistas em música ou proprietários, visando criar uma experiência musical coesa e envolvente.
Mas quem inventou isso? É uma trend do tiktok? é mais uma coisa passageira? É algo que permanece?
Para a gente começar a falar sobre isso, precisamos falar sobre o início dos listening bars, que existem há mais de 100 anos.
Os Ongaku Kissa surgiram no Japão nos anos 20. Kissa é abreviação para Kissaten e é basicamente um espaço de café, enquanto Ongaku se refere a variedade de estilos musicais, ou seja, um café de música.
Como a gente gosta de aprofundar por aqui, precisamos voltar para a era Meiji, onde o japão estava fechado do mundo por mais de 200 anos e em 1853 esse contato com os americanos foi retomado, os americanos chegaram ao japão e demandaram que eles abrissem as fronteiras para trocas e negócios de modo geral. Nesse processo, o Japão foi apresentado rapidamente aos avanços relacionados a tecnologias do ocidente em relação ao seu país, como por exemplo, a revolução industrial, que não havia impactado o Japão ainda. Então, com as ordens do imperador Meiji, decidiu-se que o país precisava alcançar o ocidente, não só no quesito industrial, mas no quesito cultural também.
Para isso acontecer, o Japão enviou uma série de estudantes para faculdades na Europa nas mais variadas áreas: arquitetura, engenharia, artes e por aí vai. Foi um momento de abertura para a cultura ocidental, que nesse mesmo momento da história, estava vivendo um aumento no número de coffee shops e casas de chás, as pessoas estavam buscando ter essa experiência de beber café, chá, encontrar os amigos e família fora de casa.
Os japoneses gostaram dessa forma de experiência social e trouxeram esse tipo de negócio para o Japão, importando de uma forma bem expressiva essa coisa meio western para seu ambiente, seja na música, seja na decoração do lugar. Alguns cafés com vibe bem europeia ou então faroeste americano, sabe? Então, começou-se a reproduzir esse tipo de espaço no Japão inicialmente com música, com bebida, dançarinas contratadas, com bastante coisa acontecendo, bastante informação, quase como uma forma de mergulhar profundamente na cultura ocidental. Com o tempo, esse tipo de lugar foi sendo refinado de acordo com o olhar cultural e design japonês, principalmente com o Café Lion que abriu as portas em 1926 e queria se diferenciar dessa coisa mais caótica que estava rolando nos cafés em Tokyo.
O Café Lion e espaços semelhantes que abriram então há praticamente 100 anos, são o início do que a gente entende hoje por listening bar, o café Lion especificamente é chamado de Meikyoku kissa um lugar que toca música clássica, onde os clientes podem ouvi-la sem maiores problemas, sem ruídos atrapalhando, atualmente sem celulares, até com política interna de silêncio, além de apreciar uma bebida e relaxar.
O Café Lion segue até os dias de hoje com as portas abertas em Tokyo, atualmente, tem mais de 10 mil álbuns que são tocados no seu espaço. Vocês conseguem imaginar a preciosidade? Mas é importante falar o espaço original foi destruído durante a segunda guerra mundial.






Observando pelas fotos disponíveis na internet quando procuramos pelo Café Lion, a gente percebe que todos os assentos estão voltados apenas para um lado e isso permite que se tenha uma experiência de concerto mais realista, como se estivessem diante de "uma orquestra de verdade". Tudo foi projetado para mergulhar você na ideia de ouvir uma apresentação orquestral.
O sistema de som foi feito sob medida para o espaço em 1950, embutido na parede de dois andares na frente do café. Fileiras de discos de vinil e CDs enchem as prateleiras e racks abaixo dos alto-falantes.
Com o tempo e o surgimento e popularização de novos estilos musicais, fizeram com que novos novos Kissa surgissem: Rock Kissa, Jazz Kissa e isso foi se espalhando pelo Japão. Mas talvez, assim como eu, você pode estar se perguntando porque isso surgiu no japão e não em outro lugar do mundo e porque as pessoas saiam de casa para ouvir música?
Durante a segunda guerra mundial e principalmente no pós guerra, o japão estava devastado. Tokyo foi duramente bombardeada, como parte dos ataques aéreos sobre o Império do Japão pelas Forças Aéreas do Exército dos Estados Unidos durante a Guerra do Pacífico, parte da Segunda Guerra Mundial.
Existem 5 bombardeios que são considerados os mais devastadores em Tokyo, mas o que destruiu o Café Lion ocorreu nas primeiras horas de 10 de março de 1945, quando cerca de 300 bombardeiros lançaram centenas de bombas incendiárias, escolha feita especificamente para queimar as casas majoritariamente feitas de madeira e papel dos japoneses, sobre Tóquio, o que causou a morte de cerca de 100.000 pessoas, outras milhares feridas e mais de 1 milhão de pessoas desabrigadas. Esse ataque custou mais vidas do que o bombardeio atômico de Nagasaki, meses depois. É uma proporção absurda, chocante e muito difícil da gente conseguir imaginar, visualizar, enfim. O bombardeio destruiu 41 km2 da cidade e gerou um dos recessos mais obscuros da memória coletiva do Japão. Além de muitas mortes, muita coisa importante para referência cultural foi destruída nos incêndios.
Ninguém nega que os bombardeios atômicos alteraram dramaticamente o curso da guerra, mas o bombardeio de Tóquio também marcou uma escalada sinistra na tentativa dos Estados Unidos de finalmente quebrar a resistência do Japão.
Imagina como ficou o país inteiro após esse período, né? Em extrema pobreza, precisando se reconstruir, seguir em frente da perda de inúmeras pessoas, de casas, de negócios, da perda de sua história, algo impossível de estimar. Ali por 1950 quando os locais reconstruídos começaram a abrir as portas, a população seguia ainda muito pobre, ninguém tinha dinheiro para comprar álbuns, vinis, tocadores de música.
A função primária dos listening bars é servir a comunidade com música.
Esses lugares se tornaram verdadeiras bibliotecas públicas de música! Lugares onde a população podia se juntar, mergulhar num álbum, experienciar a música de uma forma transcendente e esquecer um pouco das dificuldades que enfrentavam no cotidiano. É lindo pensar nisso, me faz ganhar completamente um novo respeito por esses espaços e pela tradição que se passa, a de compartilhar a vida, a arte, a de apreciar nossa breve passagem por aqui.
Muitos bairros de Tokyo tem uma série de listening bars até hoje, cada qual com suas especificações e estilos. As pessoas continuam frequentando esses espaços e construindo seu senso de comunidade conectada à arte ocupando esses lugares.
E falando em arte, como que o listening bar chegou nessa posição de reproduzir música de alta qualidade?
Uma característica que está sempre muito conectada com nossa percepção da cultura japonesa é a perfeição. Para os japoneses, sempre que se vai apresentar algo a alguém, querem apresentar na melhor forma possível, isso é um hábito que inclusive está muito relacionado com o respeito que se tem pela vida, pelas obras, pelas pessoas, sabe?
Então esse traço foi abraçado nos Kissas também, trazendo sistemas de som em que você pudesse ouvir um álbum no estado mais perfeito possível, no estado da arte, como uma forma de respeito por aquele presente criado! Do jeitinho que quem criou aquele álbum, iria gostar de que as pessoas pudessem ouvi-lo! Por isso, é muito comum que esses bares tenham um sistema de som impecável, com alto investimento, inclusive instalado de uma forma que abrace o ambiente inteiro, com alto falantes no teto, nas paredes, tudo calculado milimetricamente.
O ambiente é sempre focado em música, na escuta e experiência perfeitas dela.
Esse boom de listening bars de tempos contemporâneos, estão diretamente conectados com a cultura dos kissas, que aqui chegam sob o lema "fale menos, ouça mais".
Tem um tempo que eu fui no meu primeiro listening bar e depois aproveitei bastante minhas últimas viagens para visitar alguns fora do brasil também, sabe? De Stockholm, Copenhagen até Paris, as experiências sempre foram muito incríveis e cheias de excelência mesmo. Um deles marcou bastante na minha memória, pois Copenhagen é conhecida como referência de felicidade e conforto para as pessoas, né? Então imagina como é a experiência de um listening bar lá! Atravessei a porta com um adesivo do Tim Maia colocado logo ao lado da maçaneta e fui recebida por um ambiente bem nórdico, branco e madeira, tranquilo visualmente. O bar é comprido e estreito, com o balcão e a estação de música posicionados lado a lado na esquerda e uma fileira com bancos estofados e mesas posicionadas à direita.
A iluminação do local é completamente indireta, com pequenos abajures em cada mesa e algumas poucas luminárias ao longo do bar, com um pendente muito discreto no balcão de drinks. Na parede, uma estante repleta de nichos acomodando uma coleção bem respeitável de vinis acompanhada com um sistema de áudio hi-end, com uma reprodução impecável da música. Era uma noite tranquila, quarta-feira, o bartender se movia perfeitamente do bar para o toca-discos, e a música soando muito boa, com baixo volume, mas música de alta qualidade em termos acústicos. A conversa no espaço era intimista e tranquila, todo mundo falando baixinho e se ouvindo sem maiores problemas.
Peguei um martini clássico com o excelente gim dinamarquês Geranium e não pude deixar de notar a quantidade de prêmios acumulados pelo bar em um armário ao fundo: várias estatuetas de várias competições como melhor drink de assinatura, melhor bar e etc.
Mas tudo isso, toda experiência chega em um ponto: a sensação é de estar só em um lugar, só em um momento, assim como nadar, como dirigir, assim como estar em um lugar sem sinal de telefone e não ter como você fugir do presente, do agora, daquela música, de estar com outra pessoa ou de estar com você mesmo.
Os listening bars devem fazer com que você repense a sua relação com a música.
Ter uma experiência que transcende em você.






É uma coisa muito curiosa pensar como ondas de som conseguem causar um impacto tão grande na nossa vida, no nosso bem estar e saúde mental. A música impacta todas as áreas do cérebro já estudadas, quase como se tocasse essas áreas como um instrumento. Se você estiver no mesmo espaço em que pessoas ouvindo a mesma música, é como se o cérebro de todo mundo sincronizasse. A atividade cerebral sincroniza no tempo e nas ondas.
Visitar um listening bar é viver uma experiência diferente musicalmente e socialmente falando, apesar de que muito do que se conhece popularmente desse novos espaços chegar por meio de um trend que nos parece passageira, estamos falando de uma manifestação cultural social e acho que o essencial é que a gente entenda que esses lugares devem nos aproximar dessa relação com música e não ter essa vibe de exclusão ou fazer você se sentir inadequado por não conhecer a curadoria completa de álbuns tocados na noite.
Seria muito legal observar os listening bars se tornarem espaços mais acessíveis também, se espalhando pelos bairros da cidade para criar essa aproximação com as mais variadas manifestações e estilos da música, coisa pela qual o brasileiro é culturalmente apaixonado e que torna a nossa vida muito mais humanizada.
Acho importante contar essas histórias e falar sobre o que tem por trás das coisas que nos acertam atualmente, justamente para que a gente desenvolva um novo olhar, um novo respeito e apreciação pela vida. Um listening bar não é só uma trend passageira, essa é uma cultura centenária que tem um propósito muito humano e político em sua história, assim como tantas outras coisas que nos cercam, é só a gente que tende a esquecer que tudo é político.