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Tem dias que eu não sinto o dia passar ou tenho essa estranha sensação no dia seguinte de que estou vivendo o dia anterior. Hoje, eu acordei e meu cérebro treinado pela ansiedade vai automaticamente na direção das tarefas do dia, nos boletos em aberto, na fatura do cartão e aquela mensagem que eu esqueci de responder. Todo dia eu penso que esse não é o jeito que eu gostaria de acordar nas minhas manhãs, então para me distrair dessa ansiedade, eu abro uma rede social e entro nesse mundo paralelo sempre lotado de vídeos e mais vídeos, textos, informações aleatórias e muito estímulo visual. É quase como se entrar ali seja a solução ou o melhor caminho para acordar mais tranquila.
Calculando por cima e usando a média de horas que eu passo no telefone semanalmente, acho que passei cerca de 40% da minha vida olhando para uma tela. Assistindo a programas, filmes, navegando em um feed, lendo jornais e matérias. No momento em que saio, conecto meus fones de ouvido e desligo o mundo. Mas não é o sono o lugar onde a gente se desliga do mundo? Então porque essa necessidade de estarmos conectados logo pela manhã, praticamente sendo a segunda tarefa do dia, logo após abrir os olhos?
O Digital Intelligence Briefing de 2021 da Adobe descobriu que 47% das pessoas pegam seus telefones ao acordar. Qual é a força motriz que nos faz sentir o desejo de nos conectar online como a primeira coisa que fazemos pela manhã? Velhos hábitos são difíceis de morrer, então não é de se admirar que nossa rotina de mídia social se torne parte de nossas vidas diárias, nos ancorando a um senso de pertencimento e satisfação.
Mas vamos nos aprofundar para entender as razões psicológicas por trás desse fenômeno:
Sem dúvida, um dos fatores mais poderosos por trás do motivo pelo qual rolamos nossos feeds de mídia social no momento em que acordamos é buscar validação e manter a relevância social. Há essa necessidade constante de as pessoas "ficarem por dentro", mantendo-se atualizadas com as últimas fofocas, tendências ou notícias. O FOMO não se manifesta apenas numa festa que a gente perde, um evento que a gente não se fez presente fisicamente, mas ele também se apresenta numa trend da qual não participamos, naquele post que todo mundo já subiu e você ainda não ou na notícia que as pessoas já sabem e você ficou por fora.
Como o psicólogo e filósofo americano William James disse uma vez, "O princípio mais profundo da natureza humana é o desejo de ser apreciado." Ao rolar nossos feeds, verificamos se nossa postagem recente recebeu curtidas, comentários ou compartilhamentos de nossos colegas, refletindo assim nossa aprovação e relevância social. O medo de perder, ou FOMO, desempenha um papel significativo aqui. Essa apreensão generalizada de que os outros estão por dentro, aproveitando algo que não estamos, nos mantém grudados às plataformas de mídia social, seja inconsciente ou conscientemente.
Livia Fontana – Loadings Madona, Azul, e Uma doce surpresa, 2020.
Foto: Gilson Soares
As redes sociais são sobre o desenvolvimento do que a gente acredita ser uma comunidade, e por isso a gente desenvolve esse senso apurado de fazer parte de algo. Mas é muito curioso observar como um dos efeitos que contrapõem o senso de comunidade online, é a necessidade de criar uma comunidade offline. Por exemplo, acompanhamos a vida de muitas pessoas diariamente, digo por mim também, muitas vezes amigos e muitas vezes completos desconhecidos, gente com quem a gente não passa tempo fisicamente na vida. Mas a gente segue essas pessoas, na melhor das hipóteses, porque nos identificamos em algum aspecto: gostamos das mesmas músicas, das mesmas roupas, pegamos dicas de lugares ou existe uma discussão em torno de algum assunto que a gente gosta de aprender sobre. Mas de certo modo, é como se apenas o follow que foi dado nessa pessoa conecta-se à minha existência e a existência dessa pessoa. Quando uma relação entre um grupo de pessoas entusiastas por alguma coisa pode ser quebrada com um unfollow, será que ela de fato já foi considerada como uma comunidade?
Tem um fenômeno acontecendo com chefs de cozinha e seus restaurantes, que tem se tornado as coisas mais legais, mais descoladas que a gente pode observar e estar em. Juro, eu vi um vídeo nessa semana de um brunch feito em algum lugar em São paulo, parece que venderem ingressos pro evento, eu não vou falar sobre o nome do espaço, pois eu senti uma vibe meio arrogante, de gente empafiada, sabe? Mas eu vi que as pessoas estavam reclamando que os ingressos para o evento esgotam muito rápido e vi também a revolta de muita gente que queria fazer parte e nao conseguiu, e acho que além do FOMO, existe uma nuance que se diz respeito a cultura que esse tipo de evento propõe e o quanto você fazer parte dele te coloca também como um produtor de cultura, parte de um movimento muito nichado.
Os chefs de cozinha de São Paulo começaram a desenvolver coleções de roupas, utensílios, acessórios, assinaram collabs e criam eventos imersivos que vão além da gastronomia.
Eu acho que isso acontece, pois é em torno de uma mesa, em torno do ato de compartilhar alimentos que a gente estabelece as conexões mais profundas com comunidades. É em um jantar com amigos, um almoço com os colegas do trabalho ou num café da manhã após a corrida ou a yoga que a gente se conecta com as pessoas que apreciam ou estão desenvolvendo as mesmas atividades que a gente.
Quando houve uma compreensão de que chefs não só são bons em cozinhar, mas também pode ser curadores de eventos onde entusiastas pela comida se organizam, eles deixam de ser um chef e viram um produtor de cultura, um curador de pessoas, alguém que conecta pensamentos e ideias coletivas em torno do espaço que mais as convida a compartilhar: a mesa.
Eu logo penso na coleção com algumas peças e acessórios que o Restaurante Cais no comando do chef de cozinha Adriano de Laurentis lançou com a Cotton Project, marca aqui de São Paulo que sempre trouxe uma proposta bem contemporânea de enxergar o esporte e o estilo de vida e ocupou por anos um endereço muito icônico na cidade, ali na rua da consolação do lado dos jardins com uma fachada que já serviu de fundo pra muita foto em redes sociais. Essa coleção é muito simbólica para esse senso de produtores de cultura e sobre os assuntos que nos deixam entusiasmados, pois ao usar uma peça da coleção, além de você carregar a simbologia de consumir dessa marca, você ainda tá dizendo para o mundo que você frequenta esse restaurante, gosta de vinhos e frutos do mar ou acha o chef gatinho, sabe? É um nicho do nicho e que pode trazer benefícios de ambos os lados, pois você une dois públicos, duas comunidades e faz um convite para que elas se cruzem.
Podemos falar também das peças de casa e decoração que a chef Renata Vanzetto lançou no seu empreendimento chamado Mercearia Maravilha, a qual tem um de suas lojas físicas exatamente ao lado dos seus restaurantes, basicamente você pode almoçar uma receita da Renata e levar pra casa um prato onde vai cozinhar algo e seguir construindo a sensação de comunidade com aquela marca, restaurante e chef. Isso quando essa situação não vira um loop praticamente infinito de vídeos fazendo review das peças, das receitas, do restaurante, cozinhando em casa ou enfim, sao tantas possibilidades, mas todas elas envolvem essa urgência de produção cultural.
É como se você tivesse que ser um produtor de cultura, não basta ser apenas um consumidor.
Analisar a ascensão dos chefs de cozinha para esse patamar da tendência mais descolada que temos disponível neste momento, é uma discussão bem complexa, pois ela tem muitas faces elitizadas e que reforçam o sintoma de que para fazer parte de algo, é necessário consumir esse algo.
Mas como tudo nessa vida tem muitos lados e interpretações, a gente sabe também que o universo da cozinha e a quantidade de trabalho e dedicação envolvida para se trabalhar em uma cozinha é imensa. De certo modo, os chefs, seus legados e experiências precisam ser vividos e apreciados, sabe? Afinal, os melhores curadores são aqueles que conseguem criar um jantar com pessoas compartilhando comida, as melhores conversas e muita conexão em torno da mesa.
Com certeza muita gente faz muito dinheiro com a nossa ansiedade de não se sentir culturalmente envolvido em algo.
De acordo com um estudo recente conduzido pelo Pew Research Center, 36% das pessoas obtêm notícias das mídias sociais, tornando-as uma fonte essencial de notícias em nosso mundo conectado. Somos naturalmente atraídos por novas informações, e ser o primeiro a saber sobre elas pode nos dar uma sensação de superioridade intelectual.
Arthur Schopenhauer, um filósofo alemão, disse melhor quando disse: "A riqueza é como a água do mar; quanto mais bebemos, mais sedentos ficamos; e o mesmo vale para a fama." Nosso apetite por novos materiais é insaciável, fazendo com que ansiamos pela atualização constante de notícias, tendências e histórias em nossas vidas.
Eu lembro de uma sensação específica que foi uma experiência bem frustrante para alguém que queria muito saber de um acontecimento assim que ele se tornasse realidade: no final de semana de carnaval, a gente teve o Oscar e assim como uma parcela bem considerável da população brasileira, eu tava torcendo muito para gente levar um oscar pra casa. Nesse domingo, eu também fui a um bloco de carnaval curti bastante, mas eu cometi o erro de beber xeque mate, aparentemente ninguém fez um vídeo ensinando como beber esse negócio e eu fui inocente, eu me empolguei e eu dei PT. Minha dica é: nunca beba mais do que 1 lata por hora e sempre, sempre intercale com uma garrafa de água. E sabe quando você acha que chegou naquele nível adequado de brilho do alcool? Não existe fazer a manutenção do brilho com cheque mate, pois do brilho você vai imediatamente para o PT instantâneo.
Bom, eu cheguei em casa naquela noite, tomei banho e capotei atravessada na cama. Eu acordei depois da meia noite ouvindo gritos por todo o bairro, no início eu fiquei meio assustada, não sabia do que se tratava, mas aí lembrei do oscar e fiquei cambaleando procurando o controle da tv e o celular na cama para descobrir o que tinha acontecido: eram gritos de celebração? levamos o oscar? foi pra qual categoria? Qual o discurso? Até ligar a tv, o walter salles já tinha saído do palco e as redes sociais já estavam cheias de posts anunciando a vitória, mas eu não vi esse momento histórico ao vivo como gostaria.
A emoção de ver ao vivo, a emoção de saber exatamente quando algo aconteceu é um fator que nos coloca com uma urgência muito grande de um abastecimento anormal de informações. Ao navegar pelas mídias sociais, nosso cérebro libera o neurotransmissor dopamina. Conhecida como o "hormônio do bem-estar", a dopamina está intimamente ligada ao prazer e à recompensa. Toda vez que vemos um novo like, comentário ou compartilhamento, nosso cérebro reforça o comportamento com um aumento instantâneo de dopamina, criando a base para o ciclo de vício em mídia social.
Nossos cérebros anseiam por estrutura e ordem. Rotinas matinais, como verificar nossos telefones e rolar pelos feeds de mídia social, nos dão uma sensação de conforto e estabilidade. Elas se tornam parte integrante de nossas vidas diárias, e podemos nos sentir agitados ou desconfortáveis se as perdermos, assim como perder nosso café da manhã. Os hábitos são a arquitetura invisível da vida diária. Nossa rolagem matinal fornece uma sensação de normalidade à qual retornamos dia após dia.
Embora recorrer aos nossos telefones imediatamente após acordar possa não ser o mais saudável dos hábitos, entender a causa raiz por trás desse comportamento é o primeiro passo para quebrar o ciclo – e talvez criar um relacionamento mais consciente e intencional com nosso consumo de mídia social e talvez até mesmo desenvolver um olhar com menos pressão para gente ter uma vida polida e que exibe uma curadoria em todas as áreas, sabe? Às vezes, a gente precisa se permitir fazer algo por diversão e não como uma construção curada da nossa personalidade.
Por falar em construção da nossa personalidade, o que a gente mais vê de receitas por aí é sobre como se tornar essa a melhor versão de si mesmo e inegavelmente, essa versão acorda as 5 da manhã, escreve 3 páginas, e 1 livro, vai pra academia, faz yoga e pilates, toma um café da manhã gluten free e teve pelo menos 3 ideias inovadoras. Mas é muito curioso como essas receitas são sempre muito solitárias e dependendo única e exclusivamente de você para serem realizadas. Muitas vezes o maior senso de quem nós somos vem justamente do encontro com o outro, da convivência com o outro.
Temos tudo o que sempre precisamos na ponta dos nossos dedos e criamos uma série de compromissos para fazer a curadoria da nossa personalidade justamente para que não haja tempo de sobra para a gente conhecer quem somos. Acordamos pela manhã e já colocamos a cara no celular, todo caminho que fazemos é com fone de ouvido e o abafamento da existência de outros seres humanos. Estamos cansados de fazer tudo com uma sensação de que não estamos fazendo nada e nunca, nunca estamos verdadeiramente entediados.
Mas essa chuva de informação, de clube de corrida, de notícias, de restaurantes, de feeds e de brunchs que vendem ingresso na zona sul realmente alimentam o senso de quem nós somos?
Eu escrevo, faz muito tempo que isso é parte de quem eu sou, mas nem sempre eu sei sobre o que escrever. Chega um momento em que todas as fotos, vídeos e textos que meu cérebro absorveu não me servem mais criativamente, mas trabalham contra mim. Não sinto que tenho pensamentos originais, em vez disso, recorro a um algoritmo para manter meu cérebro ativo. Quantas vezes já fui reclamar nos stories sobre um pensamento intrusivo até perceber que foi daí que tirei o pensamento intrusivo em primeiro lugar. Meu cérebro está ativo, mas não tenho pensamentos e minha audição está capenga. Tudo porque tenho medo de ficar entediado.
Queremos ir ao cinema para sermos forçados a prestar atenção na tela grande. Queremos a mídia física de volta para podermos ler palavras no papel. Reviramos os olhos quando alguém fala sobre ser cronicamente online. Ficamos chocados ao ver vídeos de pessoas falando que encararam voos de 10, 12 horas sem nenhum tipo de mídia, livro ou entretenimento. Só ali, olhando o mundo delimitado de um espaço bem selado no céu acontecer a sua volta. Conversamos uns com os outros com espanto sobre como diminuímos nosso tempo de tela em 15% e lemos por uma hora antes de ir para a cama. Nos filmamos fazendo tarefas cotidianas, então até isso atingiu seu pico. As curtidas no Instagram atingiram o menor nível de todos os tempos, pois é também uma era de overposting e oversharing. Queremos que nossas celebridades favoritas nos levem em um tour por suas vidas diárias para que possamos assisti-las de nossas camas. Todos nós falamos sobre as mesmas coisas e queremos opinar sobre o mesmo filme. Estamos completamente presos nesta câmara de eco que embaça o cérebro, sem nenhuma maneira de sair, exceto desligando tudo. Quantas vezes a gente assiste TV com o telefone na mão para poder rolar no Instagram ao mesmo tempo. Deixar o vídeo tocar na velocidade 1x requer uma paciência imensa para algumas pessoas e quanto não se tem mais nada para fazer, é melhor que alguém nos diga o que pensar.
A gente tem muita pressa, o tempo todo e justamente para fugir de cairmos nesse lugar de pensar algo que nem é tão nosso assim, eu escolhi um quadro bem específico para colocar no meu escritório.
Há alguns anos, eu estava andando por São paulo, na artur de azevedo e passei num endereço que eu sempre dou uma visita quando posso, na Acervo Diária, que hoje é uma galeria de arte independente brasileira. Ainda do lado de fora, pela porta de vidro, eu conseguia ver um corredor longo que levava aos fundos da loja, praticamente outro cômodo e nele havia uma fotografia que tomou imediatamente minha atenção. Imagina que você está navegando no google imagens e é um dia de internet horrível, não tá carregando nada. Você está procurando uma foto e sai clicando nas imagens disponíveis da busca, mas nenhuma carrega por completo, todas ficam com aquele ícone de carregamento, geralmente aquele círculo rodando. Então, essa é a série Loading da Livia Fontana.
Livia é uma artista visual do Paraná que tem sua obra transitando entre fotografia e pintura. A série Loading é um dos trabalhos mais conhecidos da artista, são basicamente imagens baixando da internet com aquele ícone redondinho carregando no centro de muitas dessas fotografias não carregadas.
Não é uma coisa que a gente costuma pensar com frequência, já que as tela de carregamento geralmente não recebem muita atenção (ou são completamente ignoradas), cada navegador ou jogo tem uma página de espera exclusiva, que desempenha um papel indispensável em manter os usuários informados e entretidos e que demanda muita criatividade e técnica para o seu desenvolvimento. Talvez, encontrar formas de fazer você esperar é o maior desafio do design de experiência atualmente.






Um dos primeiros — se não o mais antigo — exemplos de uma tela de carregamento foi de um navegador da web descontinuado que foi crucial na popularização da internet no início dos anos 1990. Ele apresentava uma interface de carregamento rudimentar que aparecia quando os usuários clicavam em baixar um arquivo e era o antecessor dos milhares de logotipos de carregamento criativos que foram projetados por desenvolvedores da web nos anos seguintes.
O que acho particularmente interessante é pensar sobre a tela de carregamento e o seu potencial de ser bastante interativa, com o objetivo de manter você presente e o menos impaciente possível. Ninguém gosta de ficar sentado em uma tela de carregamento para sempre, e com nossos períodos de atenção cada vez mais curtos, as empresas são forçadas a serem criativas para reter o público.
Embora possam parecer enganosamente simples à primeira vista, eles realmente desempenham um papel essencial em quase qualquer programa de computador e da nossa percepção da situação, por isso a série da Livia me é tão interessante. Como alguém que trabalha há anos com redes sociais, eu experienciei o encurtamento de conteúdos que começaram com longos posts em blogs, depois para videos de 40 minutos no youtube e para vídeos de 10 segundos no tik tok. A pressa, a velocidade que tudo isso precisa ser feito e consumido é uma das principais questões do meu trabalho e eu acho que esse quadro me lembra de que esperar é uma arte. Ter paciência e ter tempo para esperar são os maiores luxos da atualidade.
Mesmo explicando o conceito da obra, sobre excesso de imagens e informações numa era digital e fazendo um convite ao relaxamento através da observação das cores, mas muita gente se perturba profundamente ao encarar as obras da Livia. Afinal, nosso cérebro não está adaptado a essa espera e inclusive, vem se exigindo cada vez mais do cérebro do que ele é biologicamente capaz.
Apesar de toda a sua complexidade, o cérebro humano é frustrantemente lento, rodando a cerca de 10 bits por segundo — menos largura de banda do que um modem dos anos 1960. Isso não é suficiente para acompanhar a constante enxurrada de informações a que somos expostos todos os dias. Os humanos nunca confiaram apenas na capacidade intelectual, é claro. Somos criaturas que usam ferramentas com uma longa história de descarregar trabalho mental. Pinturas rupestres, por exemplo, permitiram que nossos parentes pré-históricos compartilhassem e preservassem histórias que, de outra forma, ficariam presas em suas cabeças. Mas os humanos paleolíticos não carregavam supercomputadores minúsculos e oniscientes em suas mãos.
Usar ferramentas — de textos manuscritos a aplicativos de navegação sofisticados — permitiram que os humanos superassem muito as capacidades biológicas. Até mesmo aplicativos básicos como corretor ortográfico e preenchimento automático nos ajudam a escrever melhor e mais rápido do que os nossos ancestrais poderiam sonhar.
Os modelos de IA generativa de hoje foram treinados em um volume de texto pelo menos cinco vezes maior do que a soma de todos os livros que existiam na Terra há 500 anos. Dá para falar tranquilamente que a IA é muito mais inteligente do que um ser humano e é por isso que a gente adotou essa tecnologia desenvolvida como uma ferramenta para o nosso cotidiano e nosso trabalho.
Mas aí, como alguém que sempre teve um apreço pela arte, pela cultura e pela humanização do ser humano, não é novidade que falar de IA me gera sentimentos conflituosos, pois parece que uma parte dessa originalidade do ser humano se perde no processo. Um artigo recente de pesquisadores da Microsoft e da Carnegie Mellon University descobriu que uma maior dependência de ferramentas de IA no trabalho estava ligada a habilidades reduzidas de pensamento crítico. Em suas palavras, terceirizar pensamentos para IA deixa as mentes das pessoas "atrofiadas e despreparadas", o que pode "resultar na deterioração de faculdades cognitivas que deveriam ser preservadas".
Mas a questão não é se devemos evitar terceirizar a cognição completamente — não podemos, nem devemos. Em vez disso, precisamos decidir quais habilidades cognitivas são preciosas demais para desistir. É importante a gente saber que o cérebro se desenvolve com a suposição de que usaremos ferramentas e interagimos com o ambiente. A linguagem escrita é um excelente exemplo. A leitura não é codificada em nosso genoma, como a capacidade de falar, mas à medida que a gente aprende a ler e escrever, os caminhos neurais que processam informações visuais dos olhos se reorganizam, criando uma área especializada no cérebro que responde a palavras escritas mais do que outras imagens. O processo de ler e escrever remodela fisicamente o cérebro.
E conforme as ferramentas que usamos evoluem, para melhor ou para pior, a mente parece acompanhar. Nos últimos 40 anos, a porcentagem de jovens de 13 anos que relataram ler por diversão quase todos os dias caiu de 35% para 14%. Ao mesmo tempo, eles estão se saindo pior em testes que medem habilidades de pensamento crítico e a capacidade de reconhecer fontes confiáveis. Algumas pesquisas em neurociência cognitiva até sugerem que mudar de leitura profunda para formas mais superficiais de consumo de mídia, como vídeos de curta duração, pode interromper o desenvolvimento de circuitos cerebrais relacionados à leitura. Embora as evidências ainda sejam limitadas, vários estudos descobriram que o consumo de vídeos de curta duração impacta negativamente a atenção, um efeito às vezes chamado de "Cérebro TikTok".
Mas hoje, meu telefone é a primeira coisa que toco quando acordo, e a última coisa que toco antes de ir para a cama. Ele raramente está fora do alcance do braço e a gente tem um poderoso sentimento de ansiedade quando está separado de seus dispositivos.
Os potenciais efeitos colaterais da mente estendida são difíceis de estudar. Nossa dependência de ferramentas digitais é relativamente nova, e as ferramentas que os neurocientistas têm para observar a atividade cerebral humana são imprecisas e confinadas a laboratórios. Mas pesquisas emergentes apontam para uma realidade tão desconfortável quanto evidente: permitir que próteses digitais pensem por nós pode comprometer nossa capacidade de pensar por conta própria.
O principal periódico acadêmico Science publicou um estudo declarando que o Google realmente nos torna menos inteligentes. Pesquisadores descobriram que quando as pessoas esperam ter acesso futuro à informação — como acontece quando a internet inteira vive em seu bolso — sua retenção de memória e habilidades independentes de resolução de problemas diminuem. O que deveria nos preocupar é entregar nossa autonomia intelectual ao deixar que os dispositivos pensem por nós, em vez de conosco. E é precisamente isso que parece estar acontecendo com a IA.
Não saberemos por muitos anos exatamente o que nossos dispositivos estão fazendo com nossos cérebros; não temos as ferramentas neurológicas, e não houve tempo suficiente para estudos longitudinais para rastrear o impacto total. Mas temos uma noção intuitiva do que nossos dispositivos estão fazendo com nossa psique, e não é ótima. A atenção dispersa, a capacidade enfraquecida de focar, a necessidade constante de verificar atualizações — essas são mudanças tangíveis em como vivenciamos o mundo.
Talvez a razão pelo muito ser estranho, esqusito agora, é que ele tá completamente gravado e a gente tem acesso a essa memória constantemente. Nossa galeria e nossas redes sociais permitem com que a gente lembre do café da manhã que tomou no dia 26 de junho de 2018. Não é normal ter esse tipo de informação, pelo menos, nunca foi na breve história do ser humano na terra.
Como alguém que desenvolveu um trabalho e um meio de sobrevivência com as redes sociais, eu sou muito grata que eu tenho um celular com câmera, esse microfone, o acesso a internet pra compartilhar minha vida e a forma como eu penso aqui. A internet realmente me possibilitou viver uma vida que eu nunca imaginei e isso me deixa muito grata. Me filmar um dia já foi única e exclusivamente sobre uma forma de expressão, mas hoje está mais relacionado com uma performance a entregar para o mundo digital. Foi pensando nisso que eu optei em começar o podcast sem uma câmera à minha volta, pois eu sinto que isso transforma mesmo a forma como eu mergulho nesse conteúdo e como você recebe ele por aí. Com as redes sociais, todo mundo sabe que pode se viabilizar, todo mundo pode virar um meme e às vezes isso faz com a gente tenha comportamentos bem estranhos, sabe?
Livia Fontana, artista visual, nasceu e trabalha em Curitiba, Brasil, em 1979.
Série Loading, por vezes escapistas, as imagens criadas pela artista partem de apropriações e acontecimentos da internet copypaste. As imagens buscam a simplicidade estética através do vazio, na passagem de cor, na busca pela calma interior.
Me voltar para a literatura, principalmente os livros mais difíceis de compreender, aqueles que eu nao tenho o vocabulário para ler ou os poemas mais ricos da Sylvia Plath me são tão importantes: há um esforço de compreensão, um esforço para alcançar aquela voz original que dissonam de todas as mesmices e reproduções que a gente vê por aí.
Para mim, que acordo todos os dias — e especialmente na segunda-feira — pensando em como não me sentir esgotada e inútil num mundo tão brutal, que exige uma velocidade que me rouba a vida, fez todo o sentido. Eu acho que minha presença aqui e a minha vida se fazem possíveis, pois cada dia meu problema não é me adaptar a um tempo que não é o meu. Mas encontrar formas de me recusar a viver segundo valores que para mim não fazem sentido, me recusar a viver na pressa do outro.