O Corpo
"Não se nasce mulher, torna-se". Essa famosa frase do livro O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir nos diz muito sobre o que a levou a escrevê-lo: ela queria compor um ensaio filosófico sobre a condição das mulheres na sociedade da época para entender porque elas estavam em uma posição de inferioridade.
Eu nao sou a maior leitora da Simone, apesar de ter lido o segundo sexo religiosamente, e por isso, ter marcado na memória essa frase tao curta e tao expressiva ao mesmo tempo.
Nos últimos meses, eu pensei muito sobre o que nos torna mulheres e talvez, tirando um pouco do contexto da Simone ou não, existem algumas experiências boas e outras muito infelizes que nos fazem ganhar um outro nível de compreensão sobre a leitura que a sociedade faz das mulheres. Tem realmente algumas experiências que nos tornam mulheres, e eu não estou falando das biológicas ou das condições em que nascemos. Eu estou falando das coisas que acontecem quando a sociedade nos vê como mulheres e como essas coisas escancaram na nossa cara esse lugar de inferioridade que ainda somos vistas.
Eu mudei para esse novo apartamento em São Paulo há pouco menos de um ano e uma das coisas que eu mais gosto desse endereço, além de ser um apartamento muito confortável e me sentir bem aqui, é que eu moro perto do meu pilates, coisa de 200 metros de caminhada. Para mim, poder ter coisas básicas da nossa rotina perto de casa é um luxo imenso e que aumenta muito a nossa qualidade de vida, então fico realmente muito grata de estar tão pertinho de algo que me faz tão bem e que eu posso ir a pé, não preciso pegar o carro, pagar um estacionamento ou perder tempo no trânsito.
Já tem 9 meses que eu faço pilates lá, então são 9 meses de idas e voltas semanais nesses 200m de percurso e eu coleciono algumas histórias que já aconteceram nesse caminho, inclusive a história que me fez sentir desconfortável em fazer uma atividade que eu tanto gosto. Nesse trajeto curto, tiveram algumas situações em que me senti assediada por homens que trabalham em estabelecimentos dessa rua, ou seja, toda vez que eu faço esse trajeto, revivo essa situação.






Bom, esse é um dos muitos exemplos que nos fazem pensar sobre o valor que o nosso bem estar e liberdade tem em sociedade, por isso citar Simone de Beauvoir faz muito sentido aqui, principalmente O Segundo Sexo. Claro que para entender este livro, é essencial conhecer o contexto e as crenças da escritora. Simone de Beauvoir nasceu em Paris em 1908, apenas 10 anos antes de as mulheres serem eleitas para o parlamento no Reino Unido e décadas antes de as mulheres serem autorizadas a votar na França em 1944.
Simone enxergava que as mulheres eram oprimidas pelos homens e se pôs a refletir então sobre essas diferenças entre os sexos, afinal o que é uma mulher? O que é um homem? Por que há essa relação hierárquica entre eles? Ela parte de uma perspectiva da filosofia existencialista, que rejeita a noção de que haveria uma "essência" feminina (ou "cérebro" feminino) que dita que a mulher é naturalmente de um jeito apenas por ser do sexo feminino. Sua principal tese é a de que a mulher é considerada o "Outro", enquanto o homem é o sujeito universal. Ou seja, na sociedade o masculino é tido ao mesmo tempo como positivo e o neutro, enquanto o feminino é negativo. As experiências dos homens, por exemplo, são tidas como universais e objetivas, pois ele é o sujeito essencial, enquanto as das mulheres são enxergadas como específicas e subjetivas.
Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente a declarar: “Sou uma mulher”. Essa verdade constitui o fundo sobre o qual se erguerá qualquer outra afirmação. Um homem não começa nunca por se apresentar como um indivíduo de determinado sexo: que seja homem é natural. "
A pensadora propõe uma série de demandas para conseguir a emancipação feminina e a mais importante que ela acredita é que se permita, à mulher, realizar-se por meio de projetos próprios, com todos os perigos e incertezas que eles possam acarretar.
De 1949, quando Beauvoir escreveu este texto, até os dias de hoje, muita coisa mudou, mas nem tudo mudou. É por conta de eu ser mulher, de eu ser o outro, que um homem se sente no direito de invadir meu espaço e me abordar na rua para que eu faça parte de alguma fantasia que diz respeito à satisfação, alegria ou perversidade dele, mas que em nenhum momento parece considerar o meu conforto e liberdade de ir e vir.
A análise aqui é profunda, principalmente porque a gente se habitua, se adequa a essas invasões da nossa privacidade, do nosso corpo andando na rua, para que possamos ter uma vida. De um certo modo, meu sentimento é que me adequar a isso não é o ideal, mas como entrar num embate e me sentir segura? Esse desabafo que vem de mim e que é tão comum a tantas mulheres, aponta tanto a opressão que pesa sobre nós, quanto as nossas impossibilidades de nos desvencilharmos dos laços que nos prendem a tal servidão.
Qualquer lugar nessa história, nessa narrativa que a gente nunca nem pediu para participar, é uma situação desconfortável para gente e muito confortável para o homem, como escreveu Beauvoir, “o homem que constitui a mulher como um outro encontrará nela profundas cumplicidades”.
E honestamente me pergunto, que liberdade é essa que homens se sentem no direito de ter com corpos femininos?
Simone de Beauvoir por Alie Loizel | Carré d'artistes
Representar o corpo humano tem sido um dos principais temas ao longo da história da arte desde os tempos pré-históricos. De fato, entre as pinturas que marcaram a história, muitas são pinturas de corpos nus, mais especificamente de mulheres nuas.
O corpo é uma fonte fantástica de inspiração para um artista porque é simultaneamente a personificação da beleza, do desejo, do devaneio e do proibido. E são frequentemente pinturas de nus que causam escândalo na arte. Ao longo dos séculos e em todos os movimentos, as pinturas de nus criaram uma estética do corpo e da beleza.
Em 1485, Botticelli se tornou o primeiro artista a pintar um nu feminino sem uma razão religiosa. Nada parecido havia sido visto antes na Europa, pois havia um controle muito restrito da igreja, então até para evitar uma certa censura, Botticelli pintou os longos cabelos de Vênus cobrindo as partes que seriam consideradas mais polêmicas de seu corpo.
Em 1790, Francisco de Goya mostrou, provavelmente pela primeira vez, os pelos pubianos de uma mulher real e não de uma deusa ou ninfa em sua pintura La maja desnuda. O artista criou o nu sem nenhuma outra justificativa além do prazer de revelar.
Tem um quadro do Manet, o Almoço na Grama, que como a maioria das obras impressionistas, apresenta o que poderia ser uma cena cotidiana: duas mulheres e dois homens compartilhando um piquenique em uma floresta, exceto por um detalhe bem interessante para a nossa análise: Manet pintou os homens completamente vestidos de forma tradicional e cordial e uma das mulheres está completamente nua sentada ao lado dos homens.
Figuras nuas também estão no cerne da obra de Edgar Degas, como A Banheira de 1886. O nu é seu assunto favorito porque é o gênero em que ele mais inova: esses nus refletem a variedade de técnicas que Degas utiliza.
Após a Segunda Guerra Mundial, os artistas se apropriaram do nu de uma forma muito individualizada. Tom Wesselmann, um artista americano e figura importante do movimento Pop Art, criou nus femininos usando imagens recortadas de revistas e objetos encontrados.
Esses nomes citados acima tem algumas coisas em comum: eles possuem alguns dos nus femininos mais reconhecidos do mundo… e são todos homens.





Existindo através do tempo e do espaço, a maneira como seus nus foram famosos na história da arte mostra como as mulheres foram desapropriadas de seu próprio estado natural para que os homens pudessem se destacar no mundo da arte. Essas obras são uma realidade concreta de como uma sociedade preferiu objetificar o nu feminino do que deixar as mulheres ditarem sua própria representação e claro, as mulheres começaram a resistir artisticamente de muitas maneiras.
Na década de 1980, as Guerrilla Girls, um coletivo de artistas mulheres anônimas, questionaram a falta de representação de mulheres na “Retrospectiva Internacional de Pintura e Escultura Contemporâneas” do MoMa, que visava mostrar os maiores nomes da arte contemporânea: dos 169 artistas escolhidos, apenas 13 eram mulheres — menos de 8%.
Então uma pergunta bem simples foi lançada: "As mulheres precisam estar nuas para entrar no museu?"
Elas se referem ao número de artistas femininas no Metropolitan Museum em Nova York, que era inferior a 5%, enquanto 85% das obras expostas eram nus femininos.
Ainda há poucas mulheres artistas em museus. Nas minhas pesquisas, eu encontrei um estudo da Williams College nos Estados Unidos que data de 2019, e analisa os 18 maiores museus em termos de número de visitantes no país, concluindo que 87% dos artistas expostos nas coleções permanentes eram homens. Da mesma forma, na França, um estudo de 2021 lista 93,4% de artistas homens nos catálogos de museus públicos nacionais.
No Brasil, a gente tem dados do acervo da Pinacoteca e do Museu de Arte de São Paulo (o Masp), dois dos maiores museus do estado e do país, e são basicamente compostos por cerca de 20% de artistas mulheres. Na Pinacoteca, o museu mais antigo da cidade, fundado em 1905, em 2022, 24% dos artistas do acervo são mulheres.
Essa proporção também conta um pouco do nosso passado, que exclui as mulheres de todos os espaços que não os domésticos.
Mas claro, hoje em dia, toda vez que uma instituição como, por exemplo, o MASP ou a Pina, adquirem uma obra de arte, há todo um planejamento pensado para criar diversidade e existem protocolos bem específicos para uma nova arte compor esse acervo. Além disso, esse planejamento é muito mais amplo do que podemos imaginar, até porque estamos falando de um recorte que é o gênero, mas ele pode se aprofundar ainda mais quando pensamos em artistas que são mulheres negras, indígenas e mulheres trans.
Existem muitos desafios para reparar esse vazio de artes feitas por mulheres em museus e principalmente o desafio de como trazer de volta aquilo que nunca nem chegou aos olhos do mundo? Como é que você vai fazer com as obras das mulheres dos séculos 19, 18 e 17, e por aí vai, que nunca chegaram aos museus e se perderam?
Em termos de gestão, o mesmo problema se repete, pois alguns dos museus mais visitados do mundo, o British Museum, o Metropolitan e até poucos anos atrás, o Louvre, nunca tiveram diretoras mulheres em toda a sua história! Essa realidade só se alterou recentemente no Louvre com a entrada da Laurence des Cars, que tornou-se diretora em 2021, depois de 228 anos de história.
Além dessa notícia da Laurence, esse movimento vem colhendo algumas mudanças significativas, já que todos esses números foram muito menores, na casa dos 3% há poucas décadas atrás, e claro, a gente tem percebido um bom número de exposições dedicadas a mulheres artistas ultimamente.
Inclusive, recentemente quando estive viajando no meu aniversário, vi uma exposição dedicada exclusivamente a Tarsila do Amaral no Jardim de Luxemburgo em Paris, o que eu achei chiquérrimo, pois além da exposição contar com um número muito expressivo de obras, mais de 150, ela era dedicada exclusivamente a Tarsila, uma mulher brasileira! E tudo isso ali no coraçãozinho de paris com legendas grandes em portugues e a tradução bem pequenininha em francês abaixo. Também trago à memória a experiência impressionante que foi ver Lygia Clark na Pinacoteca, sempre muito disruptivo. Muitas mostras também estão sendo realizadas, juntando mulheres e apresentando seus trabalhos através de algumas semelhanças: os links podem ser feitos por época, por técnica, por conceito e contexto, mas justamente com esse título de “arte feita por mulheres”.
E aí que também mora uma armadilha, talvez a proliferação dessas mostras seja uma prova do problema da desigualdade de gênero na arte: artistas homens não precisam ser associados a uma categoria específica para serem objeto de exposições temáticas ou monográficas. Eles têm tido quase todo o espaço para si mesmos há séculos. Eu falo isso encarando o livro que eu tenho na sala de casa que fala sobre mulheres radicais na arte latino americana. Não há um livro similar a esse para homens, pois ele seria apenas sobre arte radical latino americana, entende?



Até hoje, um dos poucos números em que as mulheres ultrapassam os homens quando se trata do mundo da arte é que são as mais retratadas em nudes penduradas em paredes de museus.
A nudez feminina diz algo ousado. Ela tem poder, é inegável, mas a nudez feminina é elogiada apenas quando a mulher retratada é jovem. Os corpos de mulheres mais velhas têm sido degradados no mundo da arte há anos. Especialmente na arte da Idade Média, onde seus corpos apareciam fortemente em quadros como bruxas.
A nudez masculina modela ideais para a humanidade. A nudez feminina atua como um barômetro para as visões da sociedade sobre autonomia pessoal e modéstia.
Em 1991, Demi Moore posou nua grávida na capa da Vanity Fair e isso alterou a um comportamento social. Desde que a capa foi lançada, muitas celebridades posaram para fotos gravidíssimas e essa tendência tornou as fotos de gravidez uma moda. A foto é uma das capas de revista mais conceituadas de todos os tempos e é uma das obras mais conhecidas de Leibovitz. Mas como sempre, o corpo da mulher é território de debate sobre liberdade e a atriz foi acusada de vulgarizar a maternidade e de ser desagradável ver uma mulher nua grávida de 7 meses. O papel em "A substância", o ocorrido no Oscar, é uma repetição de uma história muito comum para Demi e para as mulheres como um todo. A história da Demi Moore é por si só uma grande lição de como a sociedade pode tratar uma mulher.

Diferente da capa da Demi que foi fotografada por uma mulher, a maravilhosa Annie Leibovitz, a maior parte dos nudes femininos que a gente tem atualmente como obras importantes do mundo da arte são feitos por homens, mas mais uma vez, as mulheres se reúnem e buscam alterar essa realidade.
Muitas artistas femininas se dedicaram e dedicam a protestos encenados e performances artísticas em cidades pelo mundo para reivindicar o nu feminino. E tem uma forma dessa reivindicação que sempre me toca muito, algumas artistas começaram a tirar nus em paisagens de natureza como uma forma de resistência. O ambiente rapidamente se tornou uma força-chave na luta pela liberdade, à medida que as mulheres procuram fortalecer a conexão do corpo feminino com a Mãe Natureza, inerentemente feminina, para se libertarem das algemas do patriarcado e da fixação completamente inadequada e sexualizada do olhar masculino.
Uma dessas artistas, que inclusive é a minha preferida, é a Mendieta, que em seu autorretrato, “Creek” de 1974, revisitou a história da personagem shakespeariana Ophelia – a mulher vitoriana arquetípica que foi representada como vulnerável e próxima da morte em um corpo de água pelo artista John Everett Millais em 1851 e a Mendieta subverteu essa narrativa ao colocar seu próprio corpo nu, vivo na água, com as costas voltadas para cima – como se negasse ao observador o privilégio de contemplar sua figura. A foto é linda, é de uma poesia e força absurda, é o tipo de coisa que me faz querer dar um grito na varanda de casa de tão libertador!
Creek | Ana Mendieta, 1974.
Celebrar artistas como Frida Kahlo, cujo trabalho traz retratos íntimos da experiência feminina. A dedicação sem filtros de Kahlo ao realismo em seus autorretratos inspirou artistas a incluir pelos faciais e corporais em corpos femininos, o que ainda é tabu nesse universo. E essa prática está lembrando mulheres e meninas jovens que elas podem se sentir confiantes no corpo que têm. Artistas femininas modernas usam nudez em seu trabalho para desafiar o padrão homogêneo de beleza feminina em nossa sociedade.
Estamos reivindicando e mudando a narrativa de que corpos femininos são commodities. E descobrindo, em vez disso, que não há melhor sensação do que ver arte que desafia e inspira você.
Eu ainda não sei o que fazer sobre as minhas caminhadas até o pilates, pois eu não pretendo desistir delas, desistir de fazer uma atividade que fortalece meu corpo e minha mente. O desconforto seguirá aqui, assim como segue acompanhando a grande maioria das mulheres em seu cotidiano, mas uma coisa é fato, eu sempre que eu consigo transformar um desconforto em alguma coisa além dele mesmo, eu me sinto um pouco mais fortalecida para seguir em frente. Espero que meu desconforto tenha virado um bom episódio deste podcast e que juntas, possamos nos sentir mais confortáveis.


